Tempos difíceis estes que vivemos: o Legislativo executa, os políticos conversam através de cadeiradas e rinocerontes deverão ter muitos votos. O Banco Central americano diminui os juros, enquanto o brasileiro os aumenta. O antropoceno está definindo que o futuro da Terra será um tosco pedaço de carvão circulando em torno do Sol.
Assim, finalmente, o artigo 196 da Constituição Federal começa a ser cumprido: o acesso à saúde é dever do Estado e direito do cidadão, construído através de políticas públicas. Reestabelecer direitos é o papel do Judiciário, mas não pode ser alcançado através de desenho de políticas – essa é a atividade do Executivo. E, se não existe a política pública que dá nexo ao desejo do constituinte, o Judiciário deverá exigir do Executivo que se estabeleça tal política. Não cabe ao Judiciário desenhar políticas públicas.
O caminho para acesso a um remédio
Se um medicamento foi registrado pela Anvisa, e recomendado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), portanto seu acesso deve ser garantido pelo Estado – e o guardião da lei é o Judiciário. A Anvisa analisa o medicamento do ponto de vista da segurança e eficácia, enquanto a Conitec realiza a análise do ponto de vista da avaliação da tecnologia para decidir se recomenda (ou não) sua incorporação – como é o caminho adotado na maioria das nações civilizadas hoje em dia. Com o aval positivo, o Ministério da Saúde deve, então, incorporar tal remédio com a efetivação de uma política a ser desenhada e implementada. Nessa rede de decisões, também se discute com a indústria o preço do medicamento.
Acontece que existe uma judicialização excessiva para que o sistema público financie remédios que não passam por esse rito e, portanto, não chegam ao SUS – para os ministros, essa situação pressiona todo o sistema, que já trabalha com recursos limitados, e traz um clima de insegurança jurídica. Agora, com a decisão do STF, os critérios para obrigar União e Estados a fornecer medicamentos ficam mais claros. É uma decisão que tem alguns pontos dignos de serem dispostos.
Quando um paciente acionar a Justiça em busca de um medicamento que não tem registro no País ou cujo uso não é aprovado no Brasil (o que chamamos de uso off label), o ônus da demonstração de segurança, eficácia e superioridade do produto caberá ao proponente e deverá ser confirmado e apoiado na medicina baseada em evidências – ou seja, por meio de estudos duplo-cego randomizados e/ou meta-análises.
Decidiu-se ainda como os gastos com as decisões judiciais deverão ser enfrentados, ficando a maior parte deles sob responsabilidade federal – mas com uma proposição a ser discutida e implementada sobre como será a participação dos Estados e municípios nessa cobertura.
Deverá ser criado também um banco de dados único com as decisões para orientar melhor o Judiciário – assim, os entes federativos, em governança colaborativa com o Poder Judiciário, implementarão uma plataforma nacional de fácil consulta para o cidadão. Ela vai centralizar todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármacos.
O avanço dessa decisão do STF é fantástico no sentido de colocar um mínimo de ordem no chamado processo de judicialização da saúde no País, mas ainda sobram questões a serem resolvidas.
A primeira delas diz respeito ao funcionamento da Conitec – para melhor desempenhar suas funções, ela deveria ser um órgão autônomo em relação ao Ministério da Saúde. Mal comparando, deveria ser um Banco Central da aprovação de novas tecnologias para o SUS – semelhante ao NICE, do serviço de saúde britânico.
A segunda questão diz respeito à parte complementar aos medicamentos: os produtos para saúde, ou seja, os medical devices e os exames subsidiários. Vale citar, por exemplo, as válvulas cardíacas implantáveis sem cirurgia aberta, os stents mais modernos, o uso de ECMO – oxigenação por membrana extracorpórea –, a indicação de cirurgia robótica e a radioterapia menos invasiva. Esses itens, atualmente disponibilizados em poucos centros de excelência, também são fruto de judicialização e deverão ser objeto de decisão semelhante.
Assim, o MS deverá expor um processo de aprovação da incorporação de novas tecnologias e técnicas que, após serem aprovadas, irão compor os serviços a que todos os cidadãos brasileiros terão acesso.
E, quando falo “todos”, devem ser todos mesmos. Assim, esse novo órgão, essa nova Conitec, não deve atuar apenas para o SUS, mas também para a medicina suplementar, resultando em uma única forma de colocar à disposição dos cidadãos a tecnologia que melhorará a condição de prestar assistência à saúde.
A Suprema Corte da Justiça do País está de parabéns e devemos reconhecer a importância da decisão proposta pelo ministro Gilmar Mendes. Tentei, de forma simples, descrevê-la aqui, mas recomendo sua leitura, particularmente aos operadores do direito. Trata-se de uma peça valiosa do ponto de vista do conhecimento jurídico e que será fundamental para o futuro do SUS, que é um dos instrumentos mais poderosos da nação para a construção de uma sociedade melhor e mais igualitária.