Passada a euforia da aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que estabelece as normas gerais para o novo sistema de tributação sobre consumo, vem o árduo trabalho de detalhar um conjunto imenso de regras operacionais que precisa ser aprovado pelo Congresso antes de entrar em vigor a unificação da cobrança de ISS, ICMS, Pis, Cofins e IPI.
Um exemplo desses riscos ficou evidente nesta semana, quando a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) publicou uma proposta de detalhamento para a Cesta Nacional de Alimentos, que a reforma tributária definiu como tendo isenção tributária, assim como uma lista de produtos com alíquota reduzida em 60%.
A associação “jura, pelo Senhor e pela imagem da Santa Cruz do Redentor”, que concebeu uma relação de produtos com a genuína intenção de “viabilizar o acesso de todos os consumidores, sem exclusões, a uma alimentação saudável, balanceada e diversificada, além de 100% livre de tributação”.
A proposta original da reforma tributária era definir uma cesta básica limitada, que atendesse principalmente aos produtos consumidos pela parcela mais pobre da sociedade.
Acontece que, para agradar o paladar de todas as famílias brasileiras, “sem exclusões”, a Abras precisou pensar em tudo: carnes, laticínios, massas, farinhas, frutas, legumes, cereais e até em molhos e temperos.
Na lista de produtos a serem isentos do novo imposto, segundo a proposta da Abras, além de todos os cortes de carnes, há também camarão, bacalhau, foie gras e até caviar. “Como negar essa linda emoção, que tanto bem fez ao meu coração”, deve estar pensando o 0,1% mais rico da população, que consome esses produtos, diante de tanta generosidade dos donos de supermercados.
Para a maioria dos brasileiros, que “na hora de trabalhar, levanta sem reclamar, antes de o galo cantar”, porém, a realidade é bastante diferente.
Sobre o caviar, para a maioria (inclusive este que vos escreve), “nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”.
Num país tão desigual, em que “na mesa de poucos, há fartura adoidado, mas se olhar para o lado, depara com a fome”, chega a ser revoltante uma associação defender a isenção de tributos para produtos supérfluos, acessíveis somente a uma parcela ínfima dos consumidores.
Além de ofensiva para a maioria da população, a proposta da Abras é inócua. Como “geralmente quem come esse prato tem bala na agulha, não é qualquer um”, os donos de supermercado não teriam nenhuma dificuldade de repassar um eventual aumento de preços provocado pelo novo imposto para consumidores praticamente sem restrição orçamentária quando vão fazer as compras do mês. Se “caviar é comida de rico”, a demanda por esses bens é praticamente inelástica.
Sendo assim, enquanto aguardo, quem sabe, o dia em que “acerto na loteria e dessa iguaria até posso provar”, continuo defendendo o espírito original da reforma tributária.
Como prescreve o sábio Zeca Pacodinho, de cujo repertório tirei todas as citações musicais deste texto, a isenção prevista na reforma tributária deve se limitar aos bens essenciais consumidos pela população mais pobre.
Na hora de se regulamentar a Cesta Básica Nacional de Alimentos, “sou mais ovo frito, farofa e torresmo, pois na minha mesa é o que mais se consome”.