Não é de agora que médicos conquistam seguidores nas redes sociais. Mas, da pandemia para cá, o número parece ter transbordado – seja porque a covid colocou em evidência as opiniões de profissionais de saúde, porque a própria doença estimulou o público a buscar informações nessa área ou porque a figura dos influenciadores digitais ganhou um destaque fora de protocolo.
O fato é que, numa pesquisa no Google usando “medical influencers”, é possível ver listas e listas deles no Instagram, a plataforma preferida da classe. Há de nanoinfluenciadores, com menos de 10 mil seguidores, a megainfluenciadores, com mais de 1 milhão.
No topo dos mega estão a cirurgiã dermatologista americana Sandra Lee (@drpimplepopper), que vive a espremer espinhas e a dissecar lipomas e cistos, com 4,6 milhões de seguidores; o russo-americano Mike Varshavski (@doctor.mike), médico de família que trata de assuntos variados e já foi perfil da revista People como o “médico mais sexy”, com 4,4 milhões; e o indiano radicado nos EUA Deepak Chopra (@deepakchopra), autor de best-sellers no campo da espiritualidade, com 3 milhões.
Invariavelmente, os médicos influenciadores conjugam a conta no Instagram com podcasts, canal no YouTube, entradas no TikTok e/ou programas de TV, uma plataforma retroalimentando a outra.
Tamanha audiência vem chamando a atenção de associações médicas para aspectos éticos da atividade, na tentativa de regular o que ainda é possível ser regulado nesse metiê visando à boa saúde do usuário. A recente decisão da Meta, dona do Instagram, WhatsApp e Facebook, de encerrar seu programa de checagem de fatos nos Estados Unidos acentuou essa preocupação.
A American Medical Association (Associação Médica Americana) tem entre seus princípios éticos, por exemplo, uma série de tópicos relativos ao uso das redes sociais por parte dos médicos, com ênfase na privacidade e no consentimento informado dos pacientes quanto a imagens e dados pessoais. A British Medical Association (Associação Médica Britânica) também conta com um manual nesse sentido, lembrando que a informalidade e o imediatismo das mídias sociais são pontos fortes do meio, mas também uma armadilha em potencial. “Uma boa regra prática é não postar quando estiver bravo, bêbado ou emocionado”, afirma o texto dirigido aos médicos.
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) se diz ciente da questão. “Estamos vivendo uma epidemia de influencers na área de saúde, e isso é uma coisa à qual precisamos reagir”, afirma Jeancarlo Fernandes Cavalcante, 3º vice-presidente da entidade.
Uma das reações do CFM seria a Resolução 2336, de 2023, conhecida como Manual da Publicidade Médica, que autoriza o médico a mostrar seu trabalho nas redes sociais, mas com ressalvas. Pode-se divulgar preços de consultas, mas não de procedimentos. É permitido compartilhar elogios sobre a própria atuação feitos em postagens de terceiros ou de pacientes, contanto que não mais do que dois por semestre (a repostagem é considerada postagem) e que não sejam sensacionalistas. Participar de publicidade de medicamento, insumo médico, equipamento, alimento e quaisquer outros produtos que induzam à garantia de resultados, nem pensar. Assim como é vedado ao influencer anunciar que trata de sistemas orgânicos, órgãos ou doenças específicas quando não for especialista.
“A maior parte dos influenciadores é generalista”, afirma Cavalcante. “Muitas vezes são recém-formados, e é aí que está o maior perigo.”
O conselheiro indica ao usuário, antes de tudo, digitar o nome do médico no portal do CFM ou do respectivo Conselho Regional de atuação e buscar o RQE, Registro de Qualificação de Especialista, conferido a quem fez residência ou obteve o título pela Associação Médica Brasileira (AMB).
“Se o conteúdo do que está falando é legítimo, cientificamente comprovado, o generalista pode fazer publicidade, mas não pode se anunciar como especialista ou anunciar especialidades que não existem. Medicina quântica, por exemplo, não existe”, completa Cavalcante.
Ciência como base
Com 1,1 milhão de seguidores no Instagram, o cardiologista paulistano Roberto Kalil Filho (@drrobertokalil), de 65 anos, diretor clínico do Instituto do Coração e professor titular da Faculdade de Medicina da USP, tem evidentes no seu perfil os dois registros, o CRM e o RQE, como oficialmente requisitado. Mas entende que, para o usuário, o mais importante é passar informação conforme o protocolo das sociedades médicas. “Um conteúdo médico, quando postado, tem de ser extremamente baseado em ciência”, afirma.
Kalil e sua equipe selecionam os temas muito pela curiosidade dos próprios seguidores, mas também quando há pesquisas relevantes, como um estudo do InCor sobre os efeitos nocivos do cigarro eletrônico, divulgado em novembro passado. Kalil entrevistou uma das autoras da pesquisa, nos moldes do que faz no programa Sinais Vitais, da CNN Brasil, também reproduzido em postagens no Instagram. “Meu objetivo é pouco teatro e muita medicina”, diz. “Tudo é no sentido de informar, e não de tratar o paciente”, esclarece, reiterando que não faz consulta por rede social.
Mais do que informar, o pediatra e sanitarista Daniel Becker quer formar. Carioca de 66 anos, Becker tem estofo para tanto. Foi o primeiro médico brasileiro a trabalhar com a organização Médicos sem Fronteiras, no limite da Tailândia com o Camboja, e um dos criadores do Estratégia Saúde da Família, programa fulcral do SUS. Nas redes sociais, ele se propõe a falar menos do dia a dia da maternidade e mais de questões graúdas da infância, dentro de um contexto político, social, econômico e ambiental – tanto que sua conta profissional no Instagram é @pediatriaintegralbr. É dos poucos médicos a não usar “Dr.” no perfil.
Sentado à frente de um celular com poucos recursos técnicos nos bastidores, assume-se como influenciador, comunicador científico e ativista. “Agora comprei uma luzinha para melhorar um pouco a iluminação aqui de casa porque a minha careca fica brilhando”, diz, rindo. “Mas acho que existe um nicho nas redes que quer simplicidade, autenticidade e autoridade, e eu acho que construí isso.”
Becker dá palestras e oferece cursos, entre eles “Comportamento infantil e educação respeitosa” e “Infância e Tecnologia”. Se pode sugerir pontos de alerta para quem deseja seguir médicos nas redes sociais, ele aponta o excesso de assertividade, agressividade, autoexibição, masculinidade tóxica, viagens de luxo e verdades absolutas. “Se não há espaço de reflexão, eu já ficaria desconfiado.”
‘Tem de ter conhecimento’
Professora livre-docente da Faculdade de Medicina da USP, a pediatra Ana Escobar (@draanaescobar) vê nas redes sociais uma via sem retorno, mas isso não a deprime. “É gostoso, é desafiador”, diz, destacando que uma informação de saúde complexa, embasada nas diretrizes científicas, pode ser passada a 1 milhão de pessoas (no caso dela, 1,2 milhão de seguidores) de um jeito simples e transformar radicalmente a vida delas.
A vida de Ana mudou por completo quando ela foi convidada para integrar o grupo de especialistas do programa Bem-Estar, da TV Globo, em 2010 (Kalil também fazia parte do time). Ela continuou dando aulas, mas, em 2011, abriu uma empresa de comunicação em saúde com a pedagoga Joana Abucham Ribeiro, com quem segue até hoje na produção de vídeos, palestras, livros, e-books e afins. Segundo Ana, 100% dos textos são de sua autoria. Joana, entre outras atribuições, faz a edição do material. “Vamos repetir, está muito longo. Eu, se fosse mãe, desligava”, reproduz Ana, se passando pela amiga nos momentos de gravação.
A comunicadora em saúde, como se autointitula, afirma que os alunos das últimas turmas para as quais deu aula estavam focados mais em ganhar dinheiro e menos em defender questões sociais. Há um baixo interesse pela residência médica e uma voluptuosidade por entrar no mercado das redes sociais, avalia.
“Só que aí tem uma coisa interessante: na área médica, para ter algum sucesso, você tem de ter um conteúdo bom, e esse conteúdo bom necessariamente exige uma preparação boa, tem de ter conhecimento. É isso que a geração nova não tem”, diz a paulistana de 66 anos que costuma fazer os vídeos em casa, com uma estante real como cenário e cachorros de pelo e osso ao pé da mesa.
Enlaçada pela gata Raja, a geriatra Ana Claudia Quintana Arantes (@anaclauquintanaarantes), de 56 anos, também humaniza sua imagem nas redes sociais com cenas da vida pessoal, mas são poucas. “Como o meu conteúdo é muito humano, não preciso me aventurar tanto nisso não”, diz. Ela se refere ao “ecossistema de cuidado”: temas que abordam o envelhecimento, o olhar para as minorias, os cuidados paliativos na redução do sofrimento.
Recheado de muita música, fotos e poesia, o Instagram de Ana Claudia conta com 633 mil seguidores. Ela afirma que se sente à vontade na plataforma, mas tem certa queda pelo YouTube, onde quer voltar a investir: “O público do YouTube tem um tempo de permanência, de atenção muito maior. No Instagram, é um acontecimento. No YouTube, é um encontro marcado.”
Arantes entende que o maior desafio como médica influenciadora é não se esquecer da sua opção profissional original. “Mais do que ser uma empresária, uma educadora, influenciar as pessoas, eu não abro mão de ser médica, o que significa tratar, cuidar e mudar a vida da pessoa para melhor”. Sob os olhares de Raja, que estica o pescoço para a câmera, a geriatra completa: “Querem ser influenciadores, querem ganhar dinheiro, mas o retorno vem mesmo é com a idade”.
Como denunciar
O CFM não sabe exatamente quantos médicos atuam como influenciadores no País. Mas fez um levantamento de quantos problemas com publicidade médica, dentro e fora das redes sociais, foram registrados no seu sistema nos últimos dez anos: 33.759. Encabeçam a lista a participação em anúncios de empresas ou produtos ligados à medicina, anúncios de aparelhagem à qual se atribui capacidade privilegiada e propaganda de método ou técnica não aceito pela comunidade científica.
Quem notar prejuízo na atuação do médico influenciador pode oferecer denúncia por e-mail ou presencialmente, no CRM do seu Estado. A partir daí, diz Cavalcante, a Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos (Codame) deve avaliar o conteúdo postado e chamar o influenciador para que corrija as irregularidades.
A comissão também pode enviar a questão à corregedoria para abertura de uma sindicância, que pode gerar processo e penalização. As penalidades, no nível do CRM, partem de uma advertência confidencial e avançam para advertência pública, suspensão do exercício profissional e até cassação.
Os passos da fiscalização, tanto em relação a aspectos éticos (publicidade, segurança, sigilo e confidencialidade do ato médico, respeito ao pudor, privacidade e dignidade do paciente) quanto técnicos (instalações, recursos humanos e materiais), são detalhados no site fiscalizacao.cfm.org.br, que o CFM colocou no ar no último dia 15.
O objetivo da página, afirma o conselho federal, é abrigar um observatório com dados sobre as fiscalizações. Não é um canal de denúncia. Quem quer denunciar é direcionado para o site do CRM do Estado, no qual é preciso fornecer dados de identificação, narrativa do fato, nome dos profissionais envolvidos no fato julgado ilícito, nome das testemunhas (se houver), documentos, data e assinatura.
Para especialistas, o não anonimato inibe as denúncias. E os conselhos regionais não são exatamente proativos no sentido de chegar ao ilícito por conta própria. Segundo o Portal da Transparência do Cremesp, em 2023, apenas 77 buscas ativas foram concluídas pela Codame quanto à divulgação de assuntos médicos, num universo de aproximadamente 166 mil profissionais registrados no conselho paulista.
As principais irregularidades levantadas pela Codame de São Paulo foram: falta de identificação de CRM e RQE, quebra de sigilo, interação com indústria farmacêutica, sensacionalismo e promessa de resultado. E as sete especialidades mais envolvidas nessas irregularidades foram: cirurgia plástica, dermatologia, endocrinologia, medicina esportiva, nutrologia, psiquiatria e urologia. Não à toa, a maior parte das ilustrações fictícias de certo e errado usadas na Resolução 2336 remete a procedimentos estéticos.
A advogada Camila Kitazawa Cortez, especialista em Direito da Medicina, Bioética e Compliance Médico, entende que a publicidade dos médicos nas redes sociais é uma tendência inevitável, especialmente para os mais jovens, que não conseguem pensar em viabilizar a profissão sem usar o Instagram.
“Sugiro a esses profissionais encarar as redes sociais como um portfólio, que pode ser ético e ponderado”, diz. “Acontece que, muitas vezes, o Instagram acaba se tornando um lugar de captação, e as maneiras pelas quais o profissional deseja captar pacientes pode ultrapassar as barreiras.”
Camila identifica três perfis de médicos influenciadores: o conservador, que faz tudo de acordo com as regras porque teme a fiscalização do CRM e não quer colocar em risco a profissão; o intermediário, que arrisca e de vez em quando faz um stories que pode gerar advertência; e o “nem aí”, que pouco se importa com os conselheiros, geralmente porque tem muito retorno financeiro.
A advogada menciona, por exemplo, um profissional que alegou perante o CRM não mais se definir como médico, e sim como influencer. Esse indivíduo, segundo ela, era reincidente e foi cassado — os processos no conselho correm em sigilo, à vista apenas das partes envolvidas. O acesso ao resultado fica disponível para consulta somente quando há pena pública já transitada em julgado.