Nascida no Morro do São João, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Bárbara Bono levou a vivência da favela para todas as empresas por onde passou em 20 anos de carreira. “O meu jeito de criar, de pensar e de trabalhar comunicação sempre teve essa visão.”
Jornalista e publicitária, foi responsável pela criação e gestão dos modelos de comunicação e marketing de mais de 15 marcas brasileiras, dentre elas Rock in Rio, Tim e Niely, do Grupo L’Óreal. “Há muitos anos, estudo a inovação por outro prisma”, diz. “Nas comunidades, a inovação faz parte da sua vida. A diferença é que, quando a gente é periférico, as pessoas chamam de gambiarra.”
Se as favelas brasileiras formassem um estado, seria o terceiro maior do Brasil em população, segundo a pesquisa Data Favela 2023. A renda movimentada pela população dessas comunidades ultrapassa R$ 200 bilhões. “O Brasil dos grandes investimentos precisa conhecer o Brasil que está além da Faria Lima.”
O evento, com produção do Coletivo 2050, vai discutir inteligência artificial, ancestralidade e tecnologia, música, entre outros temas, com a presença de inovadores periféricos. Entre os confirmados, Marcelo Rocha, ativista climático, Ana Paula Paulino, sócia da Ubuntu Produções, e DJ Mandrake, creditado na música Spaghetti da Beyoncé. O evento também acontecerá em São Bernardo do Campo, em 27 de abril. Ambos acabam em música, como no SXSW.
Leia também:
Aqui, Bárbara Bono fala sobre sua trajetória e reforça a importância de reconhecer e valorizar a inovação da periferia.
Forbes: Como você fez a transição entre sua carreira de marketing e seu movimento hoje, de promover a inovação que vem da favela?
Babi Bono: Na verdade, nunca houve uma transição porque eu sou cria de um território, eu sou cria da Zona Norte do Rio de Janeiro, de uma favela chamada Morro do São João. E isso me acompanhou na minha carreira e na minha vida inteira. O meu jeito de criar, de pensar, de trabalhar comunicação criando uma linguagem que iria chegar às pessoas, que iria conectar. Eu sempre trabalhei no marketing com essa visão de quem veio da favela. Por exemplo, eu nem gosto dessa classificação de classe C,D,E. É uma classificação baseada num consumo que é irreal. Hoje em dia a gente está falando muito mais de experiência e poder dos saberes e muito menos de poder aquisitivo. Então, ser cria de um território é algo que sempre esteve comigo, não foi uma transição.
F: O que as marcas têm a aprender com essas pontes entre a favela e o mundo corporativo?
BB: Eu não acredito que uma estratégia de marca de qualquer negócio fique de pé sem uma construção com a comunidade de interesse daquela marca. Por isso, tem muitos anos que eu estudo a inovação por outro prisma. Nas comunidades, nas favelas, inovação faz parte da sua vida. Porque se você não tem água, alguém vai dar um jeito. A diferença é que, quando a gente é periférico, as pessoas chamam nossa inovação de gambiarra. Se não tem transporte, a favela cria um mototáxi. Se não tem CEP, a galera da [favela da] Rocinha vai e cria o CEP vertical, pois o Google te dá latitude e longitude. Quase todo mundo que vem de favela já mentiu o CEP em algum momento, há dados sobre isso, para conseguir um emprego. E esse pessoal está resolvendo o problema. Se eu quiser comprar alguma coisa para minha mãe, o produto não chega. Mas com o CEP vertical, chega! Isso é inovação.
F: O que precisa mudar para que a inovação aconteça no mundo corporativo?
BB: O mais difícil hoje é fazer com que o mercado enxergue que é preciso descentralizar o investimento quando a gente está falando de impacto e inovação. E entender que o lançamento de um produto, de uma campanha, de um serviço, precisa ter como premissa o mundo que a gente está vivendo hoje. E o que esse mundo necessita.
F: Esse evento, do qual você é uma das organizadoras, vai trazer muita gente que está inovando na favela e na periferia. Como isso contribui para mudar esse quadro?
BB: A provocação é conectar a indústria criativa com pessoas diferentes das que ela está acostumada. E, para isso, essas pessoas têm que ser conhecidas. A gente vai apresentar os inovadores do Brasil, as pessoas que estão pautando a inovação. Como a gente constrói o acesso? Queremos ampliar a perspectiva sobre fornecedores, temáticas, criadores, etc. Precisamos furar bolhas. Essa é a ideia.
F: Quais são os principais agentes inovadores da favela hoje?
BB: Temos agentes de inovação em todas as temáticas que você pesquisar, vindos de todas as comunidades do Brasil. E não é difícil chegar nessas pessoas. Tem gente trabalhando com tecnologia e inovação, com design, NFT, cripto, com justiça climática, com racismo ambiental. Gente que pode prestar consultoria para as áreas de ESG das empresas. Marcelo Rocha, por exemplo, é um ativista climático, tem o Instituto Ayika; em tecnologia, temos o coletivo 2050. Em São Paulo, a Juntos Brasil tem uma metodologia de educação que está capacitando as pessoas a serem makers, de piloto de drone a programador. Em São Gonçalo, tem a Futuro On, que forma jovens em programação de games.
F: Com toda essa inovação, por que ainda estamos tão focados no que vem apenas do Vale do Silício, por exemplo?
BB: O Brasil que tem a caneta na mão, o Brasil dos grandes investimentos, precisa conhecer o Brasil que está além da Faria Lima, além da Barra da Tijuca, além dos grandes centros urbanos. Falando de números: juntando dados do Data Favela, se juntássemos todas as favelas brasileiras, a economia seria equivalente ao terceiro maior estado do país. A gente está falando de R$ 200 bilhões que são injetados na economia anualmente. O Brazilcore está pulsando no mundo todo. A Beyoncé não veio para cá à toa, a Ludmilla está no palco do Coachella. A nossa estética visual está pautando a narrativa. E o que acontece hoje é que a gente busca lá fora as referências que não cabem. A gente é que deveria estar pautando. Senão, o norte global vai continuar a pautar a inovação. Hoje, as periferias falam por si. A gente precisa parar de buscar. Mas só vai fazer isso quando conhecer direito a nossa casa.